domingo, 24 de outubro de 2010

A Urna

“Parabéns, Dr. Denari, vi lá embaixo, que o senhor, além de dentista é também músico. Não sabia dessa sua habilidade artística. Parabéns. Eu, quando jovem, toquei violão, mas em função de outros compromissos, parei, infelizmente”.

O Sr. Artur é uma jovem cabeça de 90 anos, aposentado, amante de Santos e, devido a sua viuvez, mudou-se para o interior para poder ficar aos cuidados de sua única filha, morando em um apartamento, “pertinho dela”, como ele diz. Sua belíssima postura de homem, íntegro e humano e as lembranças que guardo de nossos longos anos juntos, denotavam uma situação dental peculiar, algumas vezes, de difícil explicação. Desde que o conheci, um único dente, para ser mais explícito, um canino superior esquerdo, sustentava uma prótese com 13 dentes, galhardamente. E assim acontece até hoje.

Enquanto ele continuava a falar, sobre suas antigas habilidades artísticas, como a música e a poesia, relembrei-me de sua última revisão anual (o que sempre fazia, acompanhado por sua falante e sorridente esposa), que relato a seguir.

Nesta última revisão, quando o paciente procurou-me no consultório, eu estava curioso para saber o que tinha acontecido, pois já havia dois anos que não os via. O Sr. Afonso estava só, diferente, meio amuado, triste. Preocupado, perguntei de sua vida e pela sua esposa, onde ela estava.
“Ahhh, Dr. Denari, minha vida deu uma cambalhota. Perdi minha mulher, ela faleceu no ano passado. Não sei bem o que aconteceu, começou a passar mal, levamos a um hospital daqui e depois a transferimos para São Paulo, e em menos de uma semana, não teve jeito, ela morreu. Não houve o que a salvasse, infelizmente. Fiquei sozinho”.

Lamentei, profundamente consternado, pois sabia quão felizes eles eram.. Dava gosto ver como um se referia respeitosamente ao outro, coisa rara nos tempos atuais, neste mundo de Deus. Ficamos em silêncio por alguns segundos.
“Sozinho mesmo não fiquei, porque minha filha me levou para morar com ela, no interior, em um apartamento alugado perto de sua casa. Alugado, para ver se eu me acostumo lá, longe de Santos, que eu adoro, longe dos meus amigos, de minha casa e do meu quintal, longe de minhas flores. Não está fácil, mas minha filha ficou muito preocupada de me deixar morando sozinho, no que ela tem razão. Vamos ver o que dá”.

“Que pecado”, lamentei.

“Foi tudo tão de repente, principalmente, para uma pessoa velha como eu”.
“Que isso, Sr.Artur, velho é trapo”, disse eu, sorrindo, tocando em seu braço. “O tempo nos dirá o que de bom está atrás disso tudo. Deve haver algo bom, Deus sabe o que faz. Vamos aguardar o tempo passar”. Ele sorriu, mentirosamente, inclinando a cabeça para o lado.

“Deixe-me dar uma olhada nos seus dentes”.

Ao passar para o exame clínico, tive uma surpresa desagradável: o dente canino, aquele que dava suporte para a prótese, estava abalado e com pouca mobilidade. Este fato chamou-me a atenção, pois era coisa que não acontecia há mais de quinze anos. Procurei um motivo a mais, de tantos que eu já tinha encontrado, que justificasse esta mobilidade, mas não encontrei nada de novo. Comentei com ele, da minha preocupação com a atual situação do canino, e ambos éramos sabedores de sua vital importância. Questionei a sua dieta, mas nada do que foi dito, justificava concretamente a situação. Só um dado me chamou a atenção: tinha emagrecido sete quilos. Para uma pessoa que não era obesa, a perda de sete quilos pareceu-me muito significativa. Fiz alguns ajustes oclusais, melhorei a capacidade de corte dos dentes da prótese, solicitei que tentasse alimentar-se melhor, que tomasse vitaminas que o fortalecessem, e que por uns tempos, evitasse comidas muito fibrosas, com a intenção de evitar carga maior sobre o dente suporte, pelo menos, por enquanto.

Tentando confortá-lo, ao nos despedirmos com um forte abraço, solicitei que retornasse com mais brevidade, dentro de quatro meses talvez, e não depois de um ano, como era nosso costume.“Volte em breve. Ao mesmo tempo em que acompanho melhor seu canino, é também uma oportunidade para matar suas saudade, de tudo isto que você me contou”. Fazê-lo vir a Santos, mais vezes, para matar a saudades, seria talvez, pensei eu, o melhor remédio para o seu sofrido canino. Entretanto, ele não voltou conforme o prazo que combinamos; só apareceu agora, quase um ano e meio depois.

Despertando para a realidade, voltei minha atenção para a consulta em curso e enquanto ele ainda falava de seus dotes artísticos, reparei que ele estava outro homem: falante, alegre, saudável, com mais de seus sete quilos recuperados, parecendo como na época em que vinha acompanhado da esposa.
“Há quanto tempo, hein, Sr. Artur? Esteve sem vir a Santos todo esse tempo? Olha que já faz quase um ano e meio”.

“Tudo isso? Nossa! Não, não vim, fiquei lá no interior, tentando adaptar-me à nova vida. Afinal é lá que tenho de ficar. Minha filha, meu genro, meus netos e todos os familiares deles são muito legais comigo. Já fiz muitos amigos, estou até aprendendo a pescar. A cidade não é nenhuma Santos, mas dá para ir levando. Vim desta vez, ver o senhor, rever os amigos e providenciar algumas coisas. Hoje, já arrumei mais uma. Vi, lá no quadro, aquela reportagem da A Tribuna, falando da sua vida artística. Li a data da reportagem e vou comprar esse jornal atrasado, para mostrar aos meus amigos, essa outra bonita habilidade do meu dentista. Músico, quem diria. Eu já tenho lá, uma reportagem sobre o Dr. Jair de Freitas, que era nosso médico aqui em Santos, que cuidou da minha mulher até o seu final. Agora, terei o meu médico e o meu dentista”, concluiu sorrindo. Agradeci, sorrindo também.

“Outra coisa que vim fazer também, foi providenciar, no Memorial, a minha cremação. Quero deixar tudo ajeitado, pago. Mas eu estou pedindo a eles que, como minha mulher está enterrada lá, que no dia da minha cremação, coloquem-na comigo, assim ficamos juntos, as nossas cinzas unidas, na mesma urna”. E com brilho nos olhos, lentamente ficou balançando a cabeça.
Silêncio. Fiquei com medo de chorar e sem ter palavras. Fugi: “Agora, vamos trabalhar”. Iniciei o exame clínico, e lógico, corri para o canino. Surpresa: estava forte na sua implantação óssea, feito uma rocha, e sem mobilidade alguma.

Com os olhos bem cerrados, ele perguntou cheio de expectativa: “Como está ele?”.

“Pode abrir os olhos, E parabéns, ele está lindo de morrer. Mais forte do que nunca”. Respondi, feliz “pra caramba”, porque em poucos minutos, tínhamos ali, um amontoado de felicidade: a dele, a minha e do seu dente. ‘Sai daqui, tristeza’, como diz a canção.

“Mas, o que foi que aconteceu? Ele se curou sozinho?”, perguntou.

“Sozinho não, sua paz de espírito, agora mais adaptado à nova vida, a volta ao prazer de viver, transmitiu para o dente, forças para ele continuar vivo como você, para continuarem caminhando juntos pela vida afora. Foi só isso, porque saúde o senhor tem, mas ela, sem felicidade, não é nada.” Fáceis palavras, para serem entendidas, para quem faz poesias e gosta de música..
Ao se levantar, despedimo-nos, abracei-o, confessando minha emoção de vê-lo bem e também pela meiga idéia de cinzas juntinhas, mescladas entre si em uma única urna.

“É o modo de nós ficarmos novamente juntos. Vou trazê-la de volta para mim”.

E foi o que aconteceu sete anos depois, quando o encontrei deitado, muito feliz, cercado por gente chorando, como eu de felicidade por saber que estava chegando a hora dele continuar vivendo seu grande amor, como nunca bem agarradinhos.

sábado, 2 de outubro de 2010

Filho não se Vende

“Denari, você não quer vender o seu carrinho? É um gol ‘nove meia’ ou ‘nove sete?” perguntou um paciente, do comércio de automóveis. “É um 96 lançado em 97. Comprei zero, e hoje, passados treze anos, está só com 57 mil quilômetros. Eu pouco viajo, seu uso maior é daqui para casa e vice-versa”.

“Noventa e seis? está velho”, e balançou a cabeça igual um indiano da novela das oito da Globo (Caminho das Índias), que começa às nove.
Fiquei p.... Depois que fiz setenta e sete anos, avaliar o potencial de uma pessoa pela sua idade, eu acho uma ignorância imensurável.

“Você não quer trocar por um novo, mais moderno?”.
“Nem pensar, esse carrinho é um filho meu, carreguei-o da maternidade, ou melhor, da concessionária, lindinho de morrer; daí em diante, nestes treze anos tem sido um amor eterno entre nós dois”, encerrei o assunto sorrindo.
Mas, como bom vendedor, ele continuou.

“Como seu amigo vou lhe dar um conselho, ou mais, vou lhe contar um segredo. No dia que resolver vendê-lo, não leve à revendedora, para usar como entrada, elas não darão nada por ele. Faz parte da técnica de venda: a gente mostra todos os predicados que o novo carro tem, que serão muitos, e que o seu não tem; vai esperando nascer seu entusiasmo pelo carro novo, e depois valoriza o seu, bem por baixo. É a técnica, esperar a hora do “cara” ficar apaixonado pelo novo e vergonha do velho. Dali, é negocio fechado”, disse sorrindo ironicamente, o ‘dono do mundo’ e continuou. “Quando quiser trocar de carro, deixe esse 96, numa rua da periferia abandonado, com alarme desligado, que logo vai aparecer gente interessada nele. Carro dessa idade é bom para desmanche”.

Minha pressão naquela hora que é de 15 por 9, devia estar 40 por 60. Esse ‘cara’, além de tudo, vem querendo esquartejar o meu filhote, em troca de dinheiro? Tratei logo de mostrar-lhe o tamanho da agulha da seringa que eu tinha nas mãos.

Voltando ao consultório, após o almoço, não é que o ‘outro’ Nilson Denari, aquele que eu odeio, e que um analista disse que eu tenho tatuado de mim, quer queira quer não queira, me fez esquecer de ligar o alarme do carro, coisa que faço sempre automaticamente e, tranquilamente fui trabalhar.
Mas, como Deus é pai e não é padrasto, no final do expediente, já sozinho na clínica, eu fechava as janelas. Chovia bastante e debaixo do gelado temporal, no escuro, completamente só, lá estava ele, meu querido e leal Golzinho, me esperando, como sempre fez nos nossos deliciosos 13 anos. Morrendo de vergonha, escondido pelas paredes, tirei a chave do bolso e bem depressa acionei o alarme.

Desci correndo pelo meio da chuva, bênçãos do céu, para nos abraçarmos, feito pai e filho, eu implorando o seu perdão. Como bom menino, ele ‘disse’ não ter reparado a minha falta com o alarme e roncou bem alto, acelerando logo a nossa volta para casa.
FILHO NÃO SE VENDE.