sábado, 11 de dezembro de 2010

O pastel de palmito - uma luz

Sempre gostei de pastel, em especial, de palmito e de preferência, amanhecido. Se for com café com leite, então, muito melhor, e não é só pelo sabor, mas também pelas lembranças.

Na minha infância, aos domingos, no café da manhã, havia pastel de palmito, que meus pais compravam para o Walter e para mim, após irem ao cinema, no sábado à noite. Era uma festa, um banquete, mastigar aquele pastel de palmito amanhecido junto com o café com leite quentinho, que a minha mãe punha na nossa frente. Não fazia mal se tivesse aquela placa de nata flutuando no leite, a gente misturava tudo com a colher.

Eu começava o banquete, comendo o pastel pelas bordas, bem devagarzinho, para demorar bastante até chegar à parte mais gostosa - o recheio. Aí, era o clímax: o recheio, pedaços de palmito saboreados com o restinho de café com leite e o restinho de açúcar que ficava no fundo da xícara. Tudo isso levava quase meia hora.

Esse é o motivo porque gosto de pastel de palmito, mesmo que seja, hoje, com o copo de garapa, que o japonês me serve.

Aconteceu que numa tarde de sexta-feira, na calçada em frente à Realejo Livros, minha esposa Ewa e eu, apreciávamos Débora e Canduta executando os acordes maravilhosos dos chorinhos brasileiros. De repente, olhei um pouco à esquerda e meu olhar, como se fosse raios de luz, se fixou em uma travessa de pastéis, linda de morrer. “Só podia ser de palmito”, pensei. Dali por diante eram olhos um pouco na flauta e violão e um pouco nos pastéis.

Quando terminou a apresentação, fomos direto para a pastelaria e nos acomodamos em dois banquinhos. Como havia só uma senhora servindo o balcão e este, de repente, ficou lotado, ela se dirigiu à uma escada e chamou por alguém, que logo desceu correndo. Era uma jovem japonesinha de uns 12 anos mais ou menos que, rapidamente, começou a atender os pedidos.

Quando chegou a nossa vez, observei a ansiedade e alegria com que ela desempenhava sua tarefa. A cada pedido, quando percebia que correspondia à expectativa do cliente, era uma festa. Corria daqui e dali, como se estivesse dançando, bailando. Seus olhinhos brilhavam questionando-nos se estava tudo bem, tudo gostoso. Acenávamos com a cabeça e lá saía ela bailando.

Ao final, paguei a conta de nove reais, dando uma nota de dez. Ela foi até a mãe que estava no caixa, esperou o troco e colocou uma moeda à minha frente. Fiz com a cabeça que era dela. Ela saiu sem tocar na moeda e continuou atendendo os outros clientes. Ao passar por mim, novamente e ver que eu ainda estava lá, olhou para mim e eu olhei para a moeda. Continuou sem tocá-la. Eu reafirmei que era dela e a empurrei em sua direção.
“É sua”, eu disse. E sem tirar os olhos da japonesinha fui me afastando. Ela lentamente pegou a moeda, correu e deu para sua mãe que a colocou na gaveta. Feito isso, lá foi ela continuar a sua dança.

Eu fiquei arrasado. Ela estava fazendo aquilo com tanta alegria, por razões tão puras e eu deturpei pagando com dinheiro, o sorriso, o carinho, a atenção e o exemplo que ela nos dera.

Maldito dinheiro, maldito capitalismo, pensei. Fiquei uma caca, se ainda tivesse bonde na Praça Independência eu me atirava debaixo dele.
Mas..... eu comentava muito esse assunto na época, e hoje já passados mais de dois anos, às vezes, a cena volta à minha mente, como tivesse acontecido ontem.

Esta semana eu descobrir o porque disso tudo: eu estou neste caso até o pescoço. Vamos lá.

Na minha infância, eu acordava ao som do barulho que meu pai, dentista, fazia na sua bancada de prótese, que ficava dividindo o quarto onde eu e o meu irmão Walter, dormíamos. A riqueza daqueles instantes, para mim, fez com que já nos meus treze para catorze anos eu já ajudasse meu pai nos trabalhos protéticos. Tempos depois, mesmo não morando mais na mesma casa já que o número de filhos aumentara, eu muitas vezes passava minhas tardes naquele laboratório de prótese.

No último ano da faculdade, quando apresentei ao digníssimo e muito famoso, futuro paraninfo, professor de prótese, Dr. Guilherme Simões Gomes, uma montagem de dentes em uma dentadura que eu havia feito, ele com os olhos saindo fogo, perguntou: “Quem fez isso para você, menino?”.

Ao saber da minha história, após outros trabalhos feitos, para minha surpresa e paura, ele me convidou para estagiar com ele no seu consultório. E lá fui eu repetindo o que eu fazia com meu pai, agora com um dos mestres maiores da escola, encerrando com chave de ouro minha graduação de cirurgião-dentista. Tinha a graça divina de freqüentar não só o seu laboratório, com também, de tempos em tempos, o privilégio de auxiliá-lo na sala clínica. Revivia meu pai.

O que isso tem haver com o pastel da japonesa? Calma.

Não é que no nosso último dia, ele e sua esposa Dª. Clarice levaram-me até o portão, despejando sobre mim doces palavras, que eu, ruborizado tentava agradecer. E foi então que em um rápido movimento, o Prof. Guilherme colocou no meu bolso algo como, pensei um pedaço de papel, mas não: era dinheiro. Com a nota entre os dedos, sem entender o que estava acontecendo, veio o professor, sorriu, empurrou minha mão para dentro do bolso, me abraçou e disse: ”É para você, menino, muito, muito, meu muito obrigado”.

Saí pela rua, sem saber o caminho de casa, me perguntando a razão do dinheiro, o por que dele? Eu já me sentia muito rico, de uma riqueza muito mais rica, que o dinheiro só não compra: eu tinha aprendido mais um rico modo de começar a caminhar na profissão que eu amava. Eu me sentia orgulhoso e invejado por colegas por tudo que aconteceu comigo junto com o mestre Guilherme. Que diabo, não havia dinheiro que pagasse os momentos que estava vivendo. Mais do que de pressa me livrei daquele dinheiro dividindo pizza com amigos. Foi uma festança, sendo eu o mais alegre de todos, pois me livrei daquela praga, ou melhor, daquela mágoa.

Acho que foi o mesmo que fez a aquela japonesinha. Ela também estava pronta para este mundo.

domingo, 24 de outubro de 2010

A Urna

“Parabéns, Dr. Denari, vi lá embaixo, que o senhor, além de dentista é também músico. Não sabia dessa sua habilidade artística. Parabéns. Eu, quando jovem, toquei violão, mas em função de outros compromissos, parei, infelizmente”.

O Sr. Artur é uma jovem cabeça de 90 anos, aposentado, amante de Santos e, devido a sua viuvez, mudou-se para o interior para poder ficar aos cuidados de sua única filha, morando em um apartamento, “pertinho dela”, como ele diz. Sua belíssima postura de homem, íntegro e humano e as lembranças que guardo de nossos longos anos juntos, denotavam uma situação dental peculiar, algumas vezes, de difícil explicação. Desde que o conheci, um único dente, para ser mais explícito, um canino superior esquerdo, sustentava uma prótese com 13 dentes, galhardamente. E assim acontece até hoje.

Enquanto ele continuava a falar, sobre suas antigas habilidades artísticas, como a música e a poesia, relembrei-me de sua última revisão anual (o que sempre fazia, acompanhado por sua falante e sorridente esposa), que relato a seguir.

Nesta última revisão, quando o paciente procurou-me no consultório, eu estava curioso para saber o que tinha acontecido, pois já havia dois anos que não os via. O Sr. Afonso estava só, diferente, meio amuado, triste. Preocupado, perguntei de sua vida e pela sua esposa, onde ela estava.
“Ahhh, Dr. Denari, minha vida deu uma cambalhota. Perdi minha mulher, ela faleceu no ano passado. Não sei bem o que aconteceu, começou a passar mal, levamos a um hospital daqui e depois a transferimos para São Paulo, e em menos de uma semana, não teve jeito, ela morreu. Não houve o que a salvasse, infelizmente. Fiquei sozinho”.

Lamentei, profundamente consternado, pois sabia quão felizes eles eram.. Dava gosto ver como um se referia respeitosamente ao outro, coisa rara nos tempos atuais, neste mundo de Deus. Ficamos em silêncio por alguns segundos.
“Sozinho mesmo não fiquei, porque minha filha me levou para morar com ela, no interior, em um apartamento alugado perto de sua casa. Alugado, para ver se eu me acostumo lá, longe de Santos, que eu adoro, longe dos meus amigos, de minha casa e do meu quintal, longe de minhas flores. Não está fácil, mas minha filha ficou muito preocupada de me deixar morando sozinho, no que ela tem razão. Vamos ver o que dá”.

“Que pecado”, lamentei.

“Foi tudo tão de repente, principalmente, para uma pessoa velha como eu”.
“Que isso, Sr.Artur, velho é trapo”, disse eu, sorrindo, tocando em seu braço. “O tempo nos dirá o que de bom está atrás disso tudo. Deve haver algo bom, Deus sabe o que faz. Vamos aguardar o tempo passar”. Ele sorriu, mentirosamente, inclinando a cabeça para o lado.

“Deixe-me dar uma olhada nos seus dentes”.

Ao passar para o exame clínico, tive uma surpresa desagradável: o dente canino, aquele que dava suporte para a prótese, estava abalado e com pouca mobilidade. Este fato chamou-me a atenção, pois era coisa que não acontecia há mais de quinze anos. Procurei um motivo a mais, de tantos que eu já tinha encontrado, que justificasse esta mobilidade, mas não encontrei nada de novo. Comentei com ele, da minha preocupação com a atual situação do canino, e ambos éramos sabedores de sua vital importância. Questionei a sua dieta, mas nada do que foi dito, justificava concretamente a situação. Só um dado me chamou a atenção: tinha emagrecido sete quilos. Para uma pessoa que não era obesa, a perda de sete quilos pareceu-me muito significativa. Fiz alguns ajustes oclusais, melhorei a capacidade de corte dos dentes da prótese, solicitei que tentasse alimentar-se melhor, que tomasse vitaminas que o fortalecessem, e que por uns tempos, evitasse comidas muito fibrosas, com a intenção de evitar carga maior sobre o dente suporte, pelo menos, por enquanto.

Tentando confortá-lo, ao nos despedirmos com um forte abraço, solicitei que retornasse com mais brevidade, dentro de quatro meses talvez, e não depois de um ano, como era nosso costume.“Volte em breve. Ao mesmo tempo em que acompanho melhor seu canino, é também uma oportunidade para matar suas saudade, de tudo isto que você me contou”. Fazê-lo vir a Santos, mais vezes, para matar a saudades, seria talvez, pensei eu, o melhor remédio para o seu sofrido canino. Entretanto, ele não voltou conforme o prazo que combinamos; só apareceu agora, quase um ano e meio depois.

Despertando para a realidade, voltei minha atenção para a consulta em curso e enquanto ele ainda falava de seus dotes artísticos, reparei que ele estava outro homem: falante, alegre, saudável, com mais de seus sete quilos recuperados, parecendo como na época em que vinha acompanhado da esposa.
“Há quanto tempo, hein, Sr. Artur? Esteve sem vir a Santos todo esse tempo? Olha que já faz quase um ano e meio”.

“Tudo isso? Nossa! Não, não vim, fiquei lá no interior, tentando adaptar-me à nova vida. Afinal é lá que tenho de ficar. Minha filha, meu genro, meus netos e todos os familiares deles são muito legais comigo. Já fiz muitos amigos, estou até aprendendo a pescar. A cidade não é nenhuma Santos, mas dá para ir levando. Vim desta vez, ver o senhor, rever os amigos e providenciar algumas coisas. Hoje, já arrumei mais uma. Vi, lá no quadro, aquela reportagem da A Tribuna, falando da sua vida artística. Li a data da reportagem e vou comprar esse jornal atrasado, para mostrar aos meus amigos, essa outra bonita habilidade do meu dentista. Músico, quem diria. Eu já tenho lá, uma reportagem sobre o Dr. Jair de Freitas, que era nosso médico aqui em Santos, que cuidou da minha mulher até o seu final. Agora, terei o meu médico e o meu dentista”, concluiu sorrindo. Agradeci, sorrindo também.

“Outra coisa que vim fazer também, foi providenciar, no Memorial, a minha cremação. Quero deixar tudo ajeitado, pago. Mas eu estou pedindo a eles que, como minha mulher está enterrada lá, que no dia da minha cremação, coloquem-na comigo, assim ficamos juntos, as nossas cinzas unidas, na mesma urna”. E com brilho nos olhos, lentamente ficou balançando a cabeça.
Silêncio. Fiquei com medo de chorar e sem ter palavras. Fugi: “Agora, vamos trabalhar”. Iniciei o exame clínico, e lógico, corri para o canino. Surpresa: estava forte na sua implantação óssea, feito uma rocha, e sem mobilidade alguma.

Com os olhos bem cerrados, ele perguntou cheio de expectativa: “Como está ele?”.

“Pode abrir os olhos, E parabéns, ele está lindo de morrer. Mais forte do que nunca”. Respondi, feliz “pra caramba”, porque em poucos minutos, tínhamos ali, um amontoado de felicidade: a dele, a minha e do seu dente. ‘Sai daqui, tristeza’, como diz a canção.

“Mas, o que foi que aconteceu? Ele se curou sozinho?”, perguntou.

“Sozinho não, sua paz de espírito, agora mais adaptado à nova vida, a volta ao prazer de viver, transmitiu para o dente, forças para ele continuar vivo como você, para continuarem caminhando juntos pela vida afora. Foi só isso, porque saúde o senhor tem, mas ela, sem felicidade, não é nada.” Fáceis palavras, para serem entendidas, para quem faz poesias e gosta de música..
Ao se levantar, despedimo-nos, abracei-o, confessando minha emoção de vê-lo bem e também pela meiga idéia de cinzas juntinhas, mescladas entre si em uma única urna.

“É o modo de nós ficarmos novamente juntos. Vou trazê-la de volta para mim”.

E foi o que aconteceu sete anos depois, quando o encontrei deitado, muito feliz, cercado por gente chorando, como eu de felicidade por saber que estava chegando a hora dele continuar vivendo seu grande amor, como nunca bem agarradinhos.

sábado, 2 de outubro de 2010

Filho não se Vende

“Denari, você não quer vender o seu carrinho? É um gol ‘nove meia’ ou ‘nove sete?” perguntou um paciente, do comércio de automóveis. “É um 96 lançado em 97. Comprei zero, e hoje, passados treze anos, está só com 57 mil quilômetros. Eu pouco viajo, seu uso maior é daqui para casa e vice-versa”.

“Noventa e seis? está velho”, e balançou a cabeça igual um indiano da novela das oito da Globo (Caminho das Índias), que começa às nove.
Fiquei p.... Depois que fiz setenta e sete anos, avaliar o potencial de uma pessoa pela sua idade, eu acho uma ignorância imensurável.

“Você não quer trocar por um novo, mais moderno?”.
“Nem pensar, esse carrinho é um filho meu, carreguei-o da maternidade, ou melhor, da concessionária, lindinho de morrer; daí em diante, nestes treze anos tem sido um amor eterno entre nós dois”, encerrei o assunto sorrindo.
Mas, como bom vendedor, ele continuou.

“Como seu amigo vou lhe dar um conselho, ou mais, vou lhe contar um segredo. No dia que resolver vendê-lo, não leve à revendedora, para usar como entrada, elas não darão nada por ele. Faz parte da técnica de venda: a gente mostra todos os predicados que o novo carro tem, que serão muitos, e que o seu não tem; vai esperando nascer seu entusiasmo pelo carro novo, e depois valoriza o seu, bem por baixo. É a técnica, esperar a hora do “cara” ficar apaixonado pelo novo e vergonha do velho. Dali, é negocio fechado”, disse sorrindo ironicamente, o ‘dono do mundo’ e continuou. “Quando quiser trocar de carro, deixe esse 96, numa rua da periferia abandonado, com alarme desligado, que logo vai aparecer gente interessada nele. Carro dessa idade é bom para desmanche”.

Minha pressão naquela hora que é de 15 por 9, devia estar 40 por 60. Esse ‘cara’, além de tudo, vem querendo esquartejar o meu filhote, em troca de dinheiro? Tratei logo de mostrar-lhe o tamanho da agulha da seringa que eu tinha nas mãos.

Voltando ao consultório, após o almoço, não é que o ‘outro’ Nilson Denari, aquele que eu odeio, e que um analista disse que eu tenho tatuado de mim, quer queira quer não queira, me fez esquecer de ligar o alarme do carro, coisa que faço sempre automaticamente e, tranquilamente fui trabalhar.
Mas, como Deus é pai e não é padrasto, no final do expediente, já sozinho na clínica, eu fechava as janelas. Chovia bastante e debaixo do gelado temporal, no escuro, completamente só, lá estava ele, meu querido e leal Golzinho, me esperando, como sempre fez nos nossos deliciosos 13 anos. Morrendo de vergonha, escondido pelas paredes, tirei a chave do bolso e bem depressa acionei o alarme.

Desci correndo pelo meio da chuva, bênçãos do céu, para nos abraçarmos, feito pai e filho, eu implorando o seu perdão. Como bom menino, ele ‘disse’ não ter reparado a minha falta com o alarme e roncou bem alto, acelerando logo a nossa volta para casa.
FILHO NÃO SE VENDE.

sábado, 18 de setembro de 2010

O Bell-Air do papai ou Mimosa - a que veio em nome do Senhor

Digo sempre que eu nasci em Sorocaba, desabrochei em Santos, mas aconteci em Ribeirão Preto, quando para lá mudei, para cursar a Faculdade de Odontologia. Com meus imberbes l8 anos, saí de casa, fui morar sozinho na famosa pensão do Zé do Matão.

Éramos quatro num mesmo quarto, vindo de lugares diferentes, uns para estudar, outros para jogar futebol no clube da cidade, o Botafogo e outros tantos, para tentar a vida.

Eu era um dos mais jovens, não sabia nada da vida e estava cercado por verdadeiros ‘mestres do riscado’. Adorei tanto essa vida, que no primeiro semestre do curso vim apenas quatro vezes para casa, ‘mamar’, e no segundo, só vim nas férias, agora com outra cabeça, com outra ótica dos valores que a vida me mostrava. Principalmente, o que estava na garagem: o Chevrolet Bell-Air, duas cores em verde, novinho em folha, ali solitário, abandonado, triste, um pecado. Ficava aguardando meu pai, que trabalhava em Sorocaba, e que só vinha aos finais de semana (era dentista em Sorocaba).

Eu, junto com meu amigo e colega de classe, o Edmar Sarmento, um verdadeiro mestre em filosofia de eventos prazerosos, sentimos quanto era triste a vida daquele automóvel tão lindo, ali, cinco a seis dias por semana, fechado naquela escuridão melancólica. E ele que tinha tantas possibilidades de mostrar, para sequiosas e lindas turistas, as belezas paradisíacas de nossa região. Este cenário era um pecado para aquele lindo carro, e então, Edmar e eu decidimos interferir nesta injustiça e fomos à luta.

Assim, enquanto Dª Maria, minha mãe, se deliciava com Alô Doçura, na TV, eu, declarando que aquele programa era um ‘porre’, subia para o quarto dormir e ela acreditava. Não sabia, a doce e ingênua senhora, o que Ribeirão Preto tinha causado no seu inocente filhinho. Após um arranjo de lençóis, começavam as várias escaladas rumo ao telhado da garagem. Destelhava algumas telhas e eis-me chegando ao teto do Bell-Air. Daí, era só abrir a garagem por dentro, empurrá-lo para a rua com a ajuda do meu amigo professor e com as chaves previamente confeccionadas, lá íamos nós três, o carro, ele e eu, levarmos as turistas para passear.

O Edmar, soltando pela janela do acompanhante aquele seu sorriso cheio de malicia e veneno, era um public-relation de primeira. Em poucos minutos, lá estávamos nós cumprindo a nossa missão com as desprotegidas e curiosas turistas. Sempre dávamos preferência de mostrar as belezas da Praia Grande, suas noites maravilhosas e seu famoso Hotel das Estrelas.

Se o passeio era recusado (“Aonde é que vocês estão nos levando?”, questionavam assustadas), nada como uma parada no Binders Bar, para bebericar uma Cuba-Libre, muito bem ‘batizada’ pelo Vardevino, nosso amigo-garçon, que dava sua mãozinha para que elas não mudassem nossos planos. Na segunda dose, as moças já estavam sorrindo à toa. Era o sinal verde. E assim, íamos mantendo a consciência tranqüila, com respeito ao pobre abandonado Chevrolet Bell-Air, ao longo de todas as férias. Era uma maravilha.

De repente, tchan, tchan, tchan, tchan… a desgraça.
Uma noite, em que foi necessária, a colaboração do Vardevino mais intensamente, eis que durante o trajeto, ao atravessarmos a Ponte Pênsil, a garota do Edmar, sempre menos atraente que a minha, pois eu era o dono do carro, estrategicamente sentada no banco de trás, bem atrás de mim, gemeu que não estava se sentindo bem. “Por favor, pare o carro”. “No meio da ponte é impossível”, reclamei. Ela insistiu: “Por fa....” e um caldo quente e azedo explodiu na minha cabeça, nas minhas costas, no aveludado assento do CARRO DO PAPAI, do BELL-AIR COR VERDE DEGRADÊ, NOVINHO EM FOLHA.

Desgraça maior na vida, impossível. Foi vômito por todos os lados, que só parou quando ela saiu do carro, ao atravessarmos a ponte. Enquanto Edmar achincalhava a moça, eu, com as mãos na cabeça, chorava com aquele quadro à minha frente. E a praga da moça não parava de vomitar.

Após minutos-horas de desespero, começamos a raciocinar. Com as nossas camisas começamos a limpar o que era impossível de ser limpo. Sem nenhuma solução e grudentos até a alma, voltamos para Santos, deixando as moças no seu hotel.

Fomos à busca de Santa Clotilde, que tinha vasta experiência de acudir os aflitos; afinal era a mãe do Edmar. Ela passou horas e horas ‘enxugando o gelo’. Quanto mais mexia, mais o estufado fedia. Sentindo-me o pior dos mortais, cansado, levamos o carro para casa, sempre pensando em desgraça. Faltavam três dias para o velho voltar e minha mãe sentia muito orgulho de ver seu filho, um jovem acadêmico, quase dentista como o papai, tão dedicado com os valores patrimoniais da família, limpando o carro todos os dias.

Tudo era em vão. Cada dia que passava, pela manhã, o que explodia em minhas narinas, ao levantar a porta da garagem, quase me jogava na rua, o que tornava impossível não lembrar daquela praga de garota, podre e fedorenta, e ao mesmo tempo imaginar os raios fulminantes, acusadores e fervendo de raiva do meu pai. Mas, “God is father not mother” como diria Woody Allen.

Quando a sexta-feira chegou, meu último dia antes do Calvário, sentado na escada da cozinha, desesperado, pensando no pior que poderia acontecer, não tive dúvida, apelei. Pedi socorro ao amigão de todas as horas: Jesus Cristo, o filho Dele. Acreditei que uma pessoa mais jovem iria entender melhor a nossa situação e nos ajudar, e o muito importante, não iria contar ao Pai Dele, que ultimamente não estava indo muito com a nossa cara.

Não é que, de repente, os raios de sol ficaram mais quentes, a tarde ficou mais clara e daquela claridade surgiu à minha frente, com um andar todo angelical, a nossa gata Mimosa. Parou à minha frente por segundos e olhando profundamente nos meus olhos, lentamente se pôs em posição estratégica e fez o cocô mais fedido que eu já tinha sentido em toda minha vida. Por segundos continuou me olhando, depois se virou, examinou sua obra, viu que estava perfeita e então, mui garbosamente, desapareceu. Fiquei ali, em silêncio, petrificado, tentando entender tudo aquilo. Foi quando meu cérebro, talvez contaminado pelo odor, funcionou e eu entendi a mensagem: “Eureka, eureka. Obrigado, Amigão, desta vez você “bombou”, foi demais”, e sai pelo quintal afora, socando o ar feito Pelé quando fazia um gol de placa. Gritava aos céus: “Obrigado, amigão, fico lhe devendo mais essa. Bendita Mimosa que vem em nome do Senhor, para me salvar”.

Passada a euforia, com muita calma, com todo o carinho, delicadamente, com a ajuda de um palitinho de sorvete, levei aquelas benditas oferendas e as depositei corretamente por sobre aquelas pegadas fedorentas, lançadas no lindo veludo, que agora estava maculado, com certeza por ordem do Demônio. Janela do carro e porta da garagem sutilmente abertas completavam o correto cenário, uma obra prima. E pela primeira vez na semana dormi tranqüilo.

Acordei na manhã seguinte com berros vindo do quintal. Fui à janela, era meu pai, carregando balde, vassoura e pano de chão, blasfemando: “Maria, acorde os meninos e ache essa maldita gata, que eu vou matá-la. Maldita, ela está podre. Venha só ver o que ela fez no MEU CARRO”.
Com quatro saltos desci as escadas, exultante de alegria, para ajudar o velho, a NÃO achar a maravilhosa, a bem aventurada Mimosa, uma dádiva do céu.

E a partir dali, meus dias foram mais tranqüilos e aprendi a lição: passei a tomar mais cuidado antes de cruzar a Ponte Pênsil.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Coisas dentro em mim...

Há muito, tenho me conformando que existem dois Nilson dentro de mim: um otimista e outro pessimista, muito bem definidos, ágeis e atuantes em minha vida.

Sou muito gamado no meu temperamento otimista, que me faz feliz, enriquece, faz jovem o meu viver, com o pensamento seguro de que sonhos são para serem realizados, por mais estranhos e impossíveis que pareçam. Adoro quando, aqueles que ‘morrendo’ de inveja, me chamaram de louco.

Quanto ao pessimismo, há muito pouco tempo aprendi lidar com ele, desvalorizando-o, ao tirar o maior ‘sarro’ do meu ‘cagaço’, como por exemplo: o que os outros vão pensar e outras besteiras mais. São muitas as vezes que o Nilson otimista, gargalha das besteiras do Nilson pessimista.

Acredito que esta postura me levou a liberar, “coisas dentro em mim que estão dizendo que estou vivo”, muito vivo. Frase de uma música de Ivan Lins.

O que mais me encanta, é que são coisas simples, muito simples, mas de uma riqueza para mim, imensurável e, cujo prazer, mudou muito o meu caminho e principalmente o meu modo de por ele caminhar.

Vou citar casos que agora me fazem sorrir, cantar e dançar, saltitar de alegria, como aquela música que me toca quando um sonho torna-se uma realidade, uma festa só sua e de mais ninguém. É um ápice de felicidade.

Em quase todas as manhãs, levo frutas para os pássaros que circundam o quintal de nossa clínica. Jogo pedaços de mamão, bananas e laranjas no telhado ou as espeto cuidadosamente em uma pequena árvore de romã onde também penduro bebedouro com uma solução própria para beija-flor. É uma festa, todas as manhãs, ver o revoar dos pássaros em volta das frutas, sendo o sabiá sempre o primeiro hierarquicamente e também pelo seu porte, a pousar. Depois, vêm os sanhaços, bicos de lacre, cambacicas, bem-te-vis, pardais e outros por nós desconhecidos. Até o meio-dia devoram tudo sob muita barulheira e briga com as atrevidas abelhinhas que também aparecem.

Esse é o panorama físico e musical do café da manhã do pessoal lá da clínica, diariamente às 7 e meia, para nossa alegria e às vezes, com a presença de amigos e clientes. É a maior ‘zorra’.

Um dia, um amigo ao tomar conhecimento disso, exclamou: “Oh Denari, dando comida para os pássaros, com tanta gente passando fome por aí. Que pecado, tenha dó, pôxa”.

Com uma voz bem babaca respondi: “Sabe, acontece que anos atrás, essas aves moravam aqui, e nós, seres civilizados, destruímos suas casas, matando suas famílias, seus alimentos; seu habitat natural virou amontoados de concreto. Cada dia mais. E mesmo com tudo isso, eles gostam daqui, continuam tentando sobreviver num espaço que era só deles. Está claro para mim que eles ainda gostam muito daqui e por isso lutam para sobreviver com o muito pouco que deixamos. Eu só tento corrigir essa barbárie, só isso”.
Falei e me mantive estático à sua frente, quando recebi essa resposta:
“Oh Denari, que papo é esse. Você parece veado”.

E foi embora deixando um seu semelhante vingado e feliz.

sábado, 4 de setembro de 2010

Um Pai Interior

Ainda não sei o que nos leva a conhecer um pouco de nós mesmos; se são os sentimentos ou os acontecimentos que os tempos nos trazem, ou tudo isso junto.


Tem me chamado a atenção, um fato em minha vida que há muito reside em minha memória e a todo instante se faz presente. Eu o relato constantemente, quer seja no consultório ou fora dele, para justificar uma postura correta toda a vez que aparece uma dificuldade de relacionamento entre duas pessoas ou mais.

Vamos ao fato.

Em determinada época de minha vida, a minha relação com um dos filhos estava complicadíssima: conflitos de idéias e naturalmente, por grana. Minha esposa Ewa, como boa psicóloga, ouvia atentamente os meus lamentos até o final (é aí que mora o perigo) e um dia, quando terminei, pausadamente, justificou a indicação de ideal ‘medicação’, no ‘diagnóstico’ que havia feito.

Primeiro, ela indicou o fator causal com muita meiguice: “Mas meu bem, você o critica, vive humilhando-o” e calou. Surpreso, mais que depressa, me defendi: “Como humilho, eu faço tudo o que ele quer.” E aprumei o meu corpo pronto para a luta. Era tudo isso que ela queria. “Tem razão, faz tudo, tudo o que ele pede, caracterizando ao seu filho que ele é um incompetente, incapaz de fazer as coisas direito”.

Sentindo-me como se tivesse me esborrachado no chão, ela começou a dar o remédio homeopático: “Você precisa ajudá-lo a crescer, diga-lhe um não, deixe-o agir sozinho, acertar e até errar sozinho. Errar ainda é um dos bons remédios para crescer, virar gente, deixar de ser moleque, bebê chorão correndo para os braços do papaizão. Ele tem que deixar de ser criança de colo; está na hora de ser uma criança que cai, chora, levanta e sai, precisa aprender a se levantar. Essa é a vida, deixa seu filho viver a realidade. Ele tem que conhecer a lei do mais forte, que cai levanta e vai de novo”.

Hoje, penso que naquela hora, Ewa despejou toda a bílis acumulada durante um longo tempo de sofrimento, de ver a nossa postura imatura.

A riqueza dessa experiência tem colaborado muito na minha postura clínica, quando conto aos meus pacientes no intuito de auxiliá-los a entender e diminuir suas psicossomatizações, nas múltiplas síndromes dolorosas, freqüentes na nossa clínica.

O que eu não percebia era o enorme prazer que sentia toda vez que relatava o episódio. Ia muito além do fato de ser um dentista que procura ser mais que mero ‘doutor de dentes’, que se preocupa em ser ‘doutor de gente’.

Contar esse fato gerava uma energia radiante que perdurava dentro de mim por longo tempo. Fui ficando ‘encucado’ comigo mesmo. “Dr. Denari, aqui tem coisa”. Um ponto me parecia muito forte: como a palavra, a negação, um ‘não’ funcionava como um excelente fator positivo. Como isso era possível?

Um dia, provavelmente Freud ou Buda viraram na tumba, o sol se abriu ou acenderam-se as lamparinas dentro do meu cérebro, como dizem os indianos. Vejam só do que fui lembrar.

Ainda recém-formado, após várias oportunidades de trabalho, fiquei entusiasmado quando o Dr. Abraão Neto pôs à venda seu consultório, instalado em seu apartamento térreo, na Rua Galeão Carvalhal, esquina com a Djalma Dutra, alugando o imóvel para quem adquirisse o consultório.

Eu e meu amigo e colega de todas as horas, Edmar, das noitadas, inclusive, vibramos com a oportunidade de iniciar uma nova etapa na nossa vida profissional naquele ótimo ponto no Gonzaga. Mas os olhos brilhavam também, e muito, com os dois quartos aconchegantes nos fundos. Iríamos morar lá. Aquilo caiu do céu, e quem nos mandou aquela dádiva, com certeza foi o filho Dele, o que sabe entender melhor os mais jovens.

Tudo acordado com o colega, só faltava a grana da compra do consultório. Fui falar com a minha mãe, sempre perfeita intermediária dos negócios com o ‘velho’. Realçamos a beleza das instalações, o ponto, condução fácil, negócio perfeito, etc, etc. Só não lhe falei da intenção de ir morar lá, lógico. Podia dar zebra.

Minha mãe, como sempre, aguardou o bom momento de passar ao ‘velho’, a nossa pretensão. Meu pai ouviu pacientemente todos os detalhes do nosso rico negócio, e quando o relatório terminou, com os seus olhos esverdeados, fixos-os na minha mãe, falou: “Maria, diga ao seu filho que a minha parte eu já fiz, dei-lhe o diploma. Agora, o resto é só com ele”. Quando meu pai disse “seu filho”, ela percebeu que a vaca tinha ido pro brejo.

Frente à resposta do meu pai, meu mundo caiu. Saí blasfemando contra tudo e contra todos, principalmente contra meu pai, coisas impublicáveis. Pensei até em me atirar no canal. Bati a porta e saí para a rua, só de short, aquele de nylon, descalço. Me pus a andar e andar. Cheguei à praia, a escuridão não me deixava ver o mar, virei à direita e lá fui eu com destino de São Vicente, Praia Grande, Paraná, Santa Catarina, até o final do mundo. Se é que ele tinha final.

A raiva não passava, só aumentava. Fui blasfemando e blasfemando, até quase à divisa, quando um carro da Rádio Patrulha em rápida manobra parou ao meu lado. De lá saiu um policial, e o outro ficou de pé encostado na porta; os dois me observavam firmemente. Foi quando o primeiro aproximou-se e pediu meus documentos. Eu não tinha nada para apresentar. “Estamos de olho em você, moleque, desde lá da Ana Costa. Qual é a sua, diga logo”.

Levei um ‘bruta’ susto. Nem me lembro o que falei, mas sei que gaguejava. Ele só me liberou quando dei meu nome e o endereço, que o outro guarda confirmou pelo rádio do carro. “Vai para casa e rápido, pois vamos continuar te observando”. Nem precisava mandar, bati em retirada de volta para a minha adorável e acolhedora casa. No outro dia acordei pensando: “Vou mostrar para esse velho pão duro que eu não preciso dele”. Era só isso que meu pai queria, foi a mosca no mel.

E foi assim que eu aprendi a cair e levantar, foi assim que em certas situações, um não, é melhor que um sim. E foi assim que cheguei onde cheguei.

Esse é o motivo pelo qual vem esse prazer que tenho em contar a história com meu filho e com minha esposa. É um ‘muito’ de meu pai dentro de mim.

Ainda em tempo, uma parada obrigatória. Quase trinta anos depois, comprei a casa de esquina na Washington Luiz, 406, para onde pretendia mudar a clínica e fui pedir para que meu pai retirasse o inquilino de sua casa, o 408, pois eu tinha o sonho de ter a Clínica Denari, em sua sede própria. Prometi a ele que, enquanto ele vivesse, eu continuaria pagando-lhe aluguel do 408. Ele de imediato concordou.

Assim foi feito. Pedimos a casa ao inquilino e começamos a adaptação das duas casas para receber a clínica. De vez em quando, ele passava para acompanhar a obra. Vencido o primeiro aluguel, entreguei o dinheiro para minha mãe passar para ele. No dia seguinte ela veio me devolver; meu pai disse entender que eu estivesse com muitas despesas pela reforma. Elas, as notas, estavam muito velhas, justificou meu pai; e acrescentou que meu sonho estava ficando muito bonito, elegante, e que eu nunca mais me preocupasse com o aluguel. E assim eu cumpri até o final de sua vida.

Esse é o motivo da minha alegria maior, ter o meu pai como um aliado a mais na realização do nosso sonho, a Clínica Denari, do Dr. Antenor Denari, filhos, netos e amigos.