sábado, 4 de setembro de 2010

Um Pai Interior

Ainda não sei o que nos leva a conhecer um pouco de nós mesmos; se são os sentimentos ou os acontecimentos que os tempos nos trazem, ou tudo isso junto.


Tem me chamado a atenção, um fato em minha vida que há muito reside em minha memória e a todo instante se faz presente. Eu o relato constantemente, quer seja no consultório ou fora dele, para justificar uma postura correta toda a vez que aparece uma dificuldade de relacionamento entre duas pessoas ou mais.

Vamos ao fato.

Em determinada época de minha vida, a minha relação com um dos filhos estava complicadíssima: conflitos de idéias e naturalmente, por grana. Minha esposa Ewa, como boa psicóloga, ouvia atentamente os meus lamentos até o final (é aí que mora o perigo) e um dia, quando terminei, pausadamente, justificou a indicação de ideal ‘medicação’, no ‘diagnóstico’ que havia feito.

Primeiro, ela indicou o fator causal com muita meiguice: “Mas meu bem, você o critica, vive humilhando-o” e calou. Surpreso, mais que depressa, me defendi: “Como humilho, eu faço tudo o que ele quer.” E aprumei o meu corpo pronto para a luta. Era tudo isso que ela queria. “Tem razão, faz tudo, tudo o que ele pede, caracterizando ao seu filho que ele é um incompetente, incapaz de fazer as coisas direito”.

Sentindo-me como se tivesse me esborrachado no chão, ela começou a dar o remédio homeopático: “Você precisa ajudá-lo a crescer, diga-lhe um não, deixe-o agir sozinho, acertar e até errar sozinho. Errar ainda é um dos bons remédios para crescer, virar gente, deixar de ser moleque, bebê chorão correndo para os braços do papaizão. Ele tem que deixar de ser criança de colo; está na hora de ser uma criança que cai, chora, levanta e sai, precisa aprender a se levantar. Essa é a vida, deixa seu filho viver a realidade. Ele tem que conhecer a lei do mais forte, que cai levanta e vai de novo”.

Hoje, penso que naquela hora, Ewa despejou toda a bílis acumulada durante um longo tempo de sofrimento, de ver a nossa postura imatura.

A riqueza dessa experiência tem colaborado muito na minha postura clínica, quando conto aos meus pacientes no intuito de auxiliá-los a entender e diminuir suas psicossomatizações, nas múltiplas síndromes dolorosas, freqüentes na nossa clínica.

O que eu não percebia era o enorme prazer que sentia toda vez que relatava o episódio. Ia muito além do fato de ser um dentista que procura ser mais que mero ‘doutor de dentes’, que se preocupa em ser ‘doutor de gente’.

Contar esse fato gerava uma energia radiante que perdurava dentro de mim por longo tempo. Fui ficando ‘encucado’ comigo mesmo. “Dr. Denari, aqui tem coisa”. Um ponto me parecia muito forte: como a palavra, a negação, um ‘não’ funcionava como um excelente fator positivo. Como isso era possível?

Um dia, provavelmente Freud ou Buda viraram na tumba, o sol se abriu ou acenderam-se as lamparinas dentro do meu cérebro, como dizem os indianos. Vejam só do que fui lembrar.

Ainda recém-formado, após várias oportunidades de trabalho, fiquei entusiasmado quando o Dr. Abraão Neto pôs à venda seu consultório, instalado em seu apartamento térreo, na Rua Galeão Carvalhal, esquina com a Djalma Dutra, alugando o imóvel para quem adquirisse o consultório.

Eu e meu amigo e colega de todas as horas, Edmar, das noitadas, inclusive, vibramos com a oportunidade de iniciar uma nova etapa na nossa vida profissional naquele ótimo ponto no Gonzaga. Mas os olhos brilhavam também, e muito, com os dois quartos aconchegantes nos fundos. Iríamos morar lá. Aquilo caiu do céu, e quem nos mandou aquela dádiva, com certeza foi o filho Dele, o que sabe entender melhor os mais jovens.

Tudo acordado com o colega, só faltava a grana da compra do consultório. Fui falar com a minha mãe, sempre perfeita intermediária dos negócios com o ‘velho’. Realçamos a beleza das instalações, o ponto, condução fácil, negócio perfeito, etc, etc. Só não lhe falei da intenção de ir morar lá, lógico. Podia dar zebra.

Minha mãe, como sempre, aguardou o bom momento de passar ao ‘velho’, a nossa pretensão. Meu pai ouviu pacientemente todos os detalhes do nosso rico negócio, e quando o relatório terminou, com os seus olhos esverdeados, fixos-os na minha mãe, falou: “Maria, diga ao seu filho que a minha parte eu já fiz, dei-lhe o diploma. Agora, o resto é só com ele”. Quando meu pai disse “seu filho”, ela percebeu que a vaca tinha ido pro brejo.

Frente à resposta do meu pai, meu mundo caiu. Saí blasfemando contra tudo e contra todos, principalmente contra meu pai, coisas impublicáveis. Pensei até em me atirar no canal. Bati a porta e saí para a rua, só de short, aquele de nylon, descalço. Me pus a andar e andar. Cheguei à praia, a escuridão não me deixava ver o mar, virei à direita e lá fui eu com destino de São Vicente, Praia Grande, Paraná, Santa Catarina, até o final do mundo. Se é que ele tinha final.

A raiva não passava, só aumentava. Fui blasfemando e blasfemando, até quase à divisa, quando um carro da Rádio Patrulha em rápida manobra parou ao meu lado. De lá saiu um policial, e o outro ficou de pé encostado na porta; os dois me observavam firmemente. Foi quando o primeiro aproximou-se e pediu meus documentos. Eu não tinha nada para apresentar. “Estamos de olho em você, moleque, desde lá da Ana Costa. Qual é a sua, diga logo”.

Levei um ‘bruta’ susto. Nem me lembro o que falei, mas sei que gaguejava. Ele só me liberou quando dei meu nome e o endereço, que o outro guarda confirmou pelo rádio do carro. “Vai para casa e rápido, pois vamos continuar te observando”. Nem precisava mandar, bati em retirada de volta para a minha adorável e acolhedora casa. No outro dia acordei pensando: “Vou mostrar para esse velho pão duro que eu não preciso dele”. Era só isso que meu pai queria, foi a mosca no mel.

E foi assim que eu aprendi a cair e levantar, foi assim que em certas situações, um não, é melhor que um sim. E foi assim que cheguei onde cheguei.

Esse é o motivo pelo qual vem esse prazer que tenho em contar a história com meu filho e com minha esposa. É um ‘muito’ de meu pai dentro de mim.

Ainda em tempo, uma parada obrigatória. Quase trinta anos depois, comprei a casa de esquina na Washington Luiz, 406, para onde pretendia mudar a clínica e fui pedir para que meu pai retirasse o inquilino de sua casa, o 408, pois eu tinha o sonho de ter a Clínica Denari, em sua sede própria. Prometi a ele que, enquanto ele vivesse, eu continuaria pagando-lhe aluguel do 408. Ele de imediato concordou.

Assim foi feito. Pedimos a casa ao inquilino e começamos a adaptação das duas casas para receber a clínica. De vez em quando, ele passava para acompanhar a obra. Vencido o primeiro aluguel, entreguei o dinheiro para minha mãe passar para ele. No dia seguinte ela veio me devolver; meu pai disse entender que eu estivesse com muitas despesas pela reforma. Elas, as notas, estavam muito velhas, justificou meu pai; e acrescentou que meu sonho estava ficando muito bonito, elegante, e que eu nunca mais me preocupasse com o aluguel. E assim eu cumpri até o final de sua vida.

Esse é o motivo da minha alegria maior, ter o meu pai como um aliado a mais na realização do nosso sonho, a Clínica Denari, do Dr. Antenor Denari, filhos, netos e amigos.

4 comentários:

  1. Tio, gosto muito deste texto, e bem vindo ao mundo infinito dos Blogs. Sucesso

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  2. Dr Nilson adoreiiiii, sabe conhecer o Sr foi o máximo. Um ser HUMANO maravilhoso que eu nunca em minha vida tinha conhecido... Estou com saudades dessa Casa e Clínica chamada DENARI! Bjs Meu amigo e DR.

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  3. Querido Dr, como disse o Dr Marcos, seja bem vindo aos blogs!! Esta história é linda, já tinha escutado do senhor ai pelos corredores da clinica. Mas ñ me canso de ler, é uma lição de vida, assim como todas as outras que tive a oportunidade de conhecer durante estes anos. Me sinto lisonjeada por fazer parte do seu "jardim". Bjos

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  4. Dr.Nilson adorei ler esta história e dei risada dos "apertos" que você passou. Eu entendo muito a palavra NÃO pois ouvi muitos desde que nasci, e assim aprendi muito cedo que andar com os próprios pés é muito estimulante e me fez conseguir tudo que sempre quis na vida. Beijos.
    Suzana

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