sábado, 18 de setembro de 2010

O Bell-Air do papai ou Mimosa - a que veio em nome do Senhor

Digo sempre que eu nasci em Sorocaba, desabrochei em Santos, mas aconteci em Ribeirão Preto, quando para lá mudei, para cursar a Faculdade de Odontologia. Com meus imberbes l8 anos, saí de casa, fui morar sozinho na famosa pensão do Zé do Matão.

Éramos quatro num mesmo quarto, vindo de lugares diferentes, uns para estudar, outros para jogar futebol no clube da cidade, o Botafogo e outros tantos, para tentar a vida.

Eu era um dos mais jovens, não sabia nada da vida e estava cercado por verdadeiros ‘mestres do riscado’. Adorei tanto essa vida, que no primeiro semestre do curso vim apenas quatro vezes para casa, ‘mamar’, e no segundo, só vim nas férias, agora com outra cabeça, com outra ótica dos valores que a vida me mostrava. Principalmente, o que estava na garagem: o Chevrolet Bell-Air, duas cores em verde, novinho em folha, ali solitário, abandonado, triste, um pecado. Ficava aguardando meu pai, que trabalhava em Sorocaba, e que só vinha aos finais de semana (era dentista em Sorocaba).

Eu, junto com meu amigo e colega de classe, o Edmar Sarmento, um verdadeiro mestre em filosofia de eventos prazerosos, sentimos quanto era triste a vida daquele automóvel tão lindo, ali, cinco a seis dias por semana, fechado naquela escuridão melancólica. E ele que tinha tantas possibilidades de mostrar, para sequiosas e lindas turistas, as belezas paradisíacas de nossa região. Este cenário era um pecado para aquele lindo carro, e então, Edmar e eu decidimos interferir nesta injustiça e fomos à luta.

Assim, enquanto Dª Maria, minha mãe, se deliciava com Alô Doçura, na TV, eu, declarando que aquele programa era um ‘porre’, subia para o quarto dormir e ela acreditava. Não sabia, a doce e ingênua senhora, o que Ribeirão Preto tinha causado no seu inocente filhinho. Após um arranjo de lençóis, começavam as várias escaladas rumo ao telhado da garagem. Destelhava algumas telhas e eis-me chegando ao teto do Bell-Air. Daí, era só abrir a garagem por dentro, empurrá-lo para a rua com a ajuda do meu amigo professor e com as chaves previamente confeccionadas, lá íamos nós três, o carro, ele e eu, levarmos as turistas para passear.

O Edmar, soltando pela janela do acompanhante aquele seu sorriso cheio de malicia e veneno, era um public-relation de primeira. Em poucos minutos, lá estávamos nós cumprindo a nossa missão com as desprotegidas e curiosas turistas. Sempre dávamos preferência de mostrar as belezas da Praia Grande, suas noites maravilhosas e seu famoso Hotel das Estrelas.

Se o passeio era recusado (“Aonde é que vocês estão nos levando?”, questionavam assustadas), nada como uma parada no Binders Bar, para bebericar uma Cuba-Libre, muito bem ‘batizada’ pelo Vardevino, nosso amigo-garçon, que dava sua mãozinha para que elas não mudassem nossos planos. Na segunda dose, as moças já estavam sorrindo à toa. Era o sinal verde. E assim, íamos mantendo a consciência tranqüila, com respeito ao pobre abandonado Chevrolet Bell-Air, ao longo de todas as férias. Era uma maravilha.

De repente, tchan, tchan, tchan, tchan… a desgraça.
Uma noite, em que foi necessária, a colaboração do Vardevino mais intensamente, eis que durante o trajeto, ao atravessarmos a Ponte Pênsil, a garota do Edmar, sempre menos atraente que a minha, pois eu era o dono do carro, estrategicamente sentada no banco de trás, bem atrás de mim, gemeu que não estava se sentindo bem. “Por favor, pare o carro”. “No meio da ponte é impossível”, reclamei. Ela insistiu: “Por fa....” e um caldo quente e azedo explodiu na minha cabeça, nas minhas costas, no aveludado assento do CARRO DO PAPAI, do BELL-AIR COR VERDE DEGRADÊ, NOVINHO EM FOLHA.

Desgraça maior na vida, impossível. Foi vômito por todos os lados, que só parou quando ela saiu do carro, ao atravessarmos a ponte. Enquanto Edmar achincalhava a moça, eu, com as mãos na cabeça, chorava com aquele quadro à minha frente. E a praga da moça não parava de vomitar.

Após minutos-horas de desespero, começamos a raciocinar. Com as nossas camisas começamos a limpar o que era impossível de ser limpo. Sem nenhuma solução e grudentos até a alma, voltamos para Santos, deixando as moças no seu hotel.

Fomos à busca de Santa Clotilde, que tinha vasta experiência de acudir os aflitos; afinal era a mãe do Edmar. Ela passou horas e horas ‘enxugando o gelo’. Quanto mais mexia, mais o estufado fedia. Sentindo-me o pior dos mortais, cansado, levamos o carro para casa, sempre pensando em desgraça. Faltavam três dias para o velho voltar e minha mãe sentia muito orgulho de ver seu filho, um jovem acadêmico, quase dentista como o papai, tão dedicado com os valores patrimoniais da família, limpando o carro todos os dias.

Tudo era em vão. Cada dia que passava, pela manhã, o que explodia em minhas narinas, ao levantar a porta da garagem, quase me jogava na rua, o que tornava impossível não lembrar daquela praga de garota, podre e fedorenta, e ao mesmo tempo imaginar os raios fulminantes, acusadores e fervendo de raiva do meu pai. Mas, “God is father not mother” como diria Woody Allen.

Quando a sexta-feira chegou, meu último dia antes do Calvário, sentado na escada da cozinha, desesperado, pensando no pior que poderia acontecer, não tive dúvida, apelei. Pedi socorro ao amigão de todas as horas: Jesus Cristo, o filho Dele. Acreditei que uma pessoa mais jovem iria entender melhor a nossa situação e nos ajudar, e o muito importante, não iria contar ao Pai Dele, que ultimamente não estava indo muito com a nossa cara.

Não é que, de repente, os raios de sol ficaram mais quentes, a tarde ficou mais clara e daquela claridade surgiu à minha frente, com um andar todo angelical, a nossa gata Mimosa. Parou à minha frente por segundos e olhando profundamente nos meus olhos, lentamente se pôs em posição estratégica e fez o cocô mais fedido que eu já tinha sentido em toda minha vida. Por segundos continuou me olhando, depois se virou, examinou sua obra, viu que estava perfeita e então, mui garbosamente, desapareceu. Fiquei ali, em silêncio, petrificado, tentando entender tudo aquilo. Foi quando meu cérebro, talvez contaminado pelo odor, funcionou e eu entendi a mensagem: “Eureka, eureka. Obrigado, Amigão, desta vez você “bombou”, foi demais”, e sai pelo quintal afora, socando o ar feito Pelé quando fazia um gol de placa. Gritava aos céus: “Obrigado, amigão, fico lhe devendo mais essa. Bendita Mimosa que vem em nome do Senhor, para me salvar”.

Passada a euforia, com muita calma, com todo o carinho, delicadamente, com a ajuda de um palitinho de sorvete, levei aquelas benditas oferendas e as depositei corretamente por sobre aquelas pegadas fedorentas, lançadas no lindo veludo, que agora estava maculado, com certeza por ordem do Demônio. Janela do carro e porta da garagem sutilmente abertas completavam o correto cenário, uma obra prima. E pela primeira vez na semana dormi tranqüilo.

Acordei na manhã seguinte com berros vindo do quintal. Fui à janela, era meu pai, carregando balde, vassoura e pano de chão, blasfemando: “Maria, acorde os meninos e ache essa maldita gata, que eu vou matá-la. Maldita, ela está podre. Venha só ver o que ela fez no MEU CARRO”.
Com quatro saltos desci as escadas, exultante de alegria, para ajudar o velho, a NÃO achar a maravilhosa, a bem aventurada Mimosa, uma dádiva do céu.

E a partir dali, meus dias foram mais tranqüilos e aprendi a lição: passei a tomar mais cuidado antes de cruzar a Ponte Pênsil.

2 comentários:

  1. Oi Nilson

    Eu estava com a razão. Você é um grande crônista.

    Parabens

    Amigo Tarcisio

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  2. É com muito pazer que faço uma visita ao seu blog (a primeira de muitas).

    Sou paciente da Dra Marli, e já fui apresentada a você (não consigo chamar de Sr. um jovem) como sua fã.

    Indiquei o seu blog lá no meu, e espero contribuir com a divulgação dele.

    Obrigada por compartilhar essas crônicas maravilhosas!!!

    Abraços

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